Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”
“A Economia de Francisco não é apenas um encontro, mas um processo já iniciado. É um caminho que não começa e nem termina em Assis, mas um movimento global em que as juventudes e as minorias abraâmicas se comprometem a imaginar um futuro no qual a economia seja colaborativa, solidária, criativa, inovadora e profundamente ecológica e democrática. Uma economia das pluralidades e das diversidades, dando lugar à promoção da vida. Há tarefas para o agora, para este tempo da pandemia e para o seu pós, e há tarefas de longo prazo para as mudanças estruturais, tarefas locais, regionais e globais”, escrevem Claudia de Andrade Silva, Klaus da Silva Raupp, Lucas Prata Feres, Roberto Jefferson Normando e Tatiana Vasconcelos Fleming Machado [1], para a Coluna Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco.
Que a economia está em ruínas pode ser visto, literal ou metaforicamente, no que restou da Torre Grenfell, em Londres, e nos corpos das trabalhadoras soterradas sob os escombros da fábrica de tecidos em Dhaka, Bangladesh; no Rio Doce sufocado pela lama tóxica em Minas Gerais e nas barracas dos que moram nas ruas do bairro de Skid Row, em Los Angeles. Nos quatro cenários, o que vemos é uma economia que se desconectou das necessidades das pessoas e da natureza. O capitalismo, realizando seu conceito com a desconstrução das amarras institucionais constituídas após a barbárie das Guerras Mundiais, mostra hoje seu inexorável caráter abstrato e autorreferencial: no processo de acumulação de valor em forma monetária, o ser humano é um mero agente cada vez mais dispensável. Um sistema econômico vocacionado à insustentabilidade, que anuncia sua própria ruína.
O filósofo italiano Franco Berardi diz que o tempo despersonalizado se converteu no agente do processo de valorização do capital. O tempo está separado da existência social do trabalhador, que não tem direitos nem necessidades, e é apenas fragmento modular a ser recombinado pelo processo econômico. A sinergia entre capitalismo financeiro e a tecnologia digital propulsou a vida social a uma dimensão de tempo fora de controle, alijada do tempo da compreensão e da intencionalidade humana. Ao acelerar o tempo, o capitalismo também reconfigurou o espaço. A produção e o trabalho ocupam lugares cada vez mais concentrados e redirecionam os fluxos de pessoas e mercadorias. A burguesia desterritorializada já não divide o espaço social com seus trabalhadores, apenas compra deles, à distância, pacotes de tempo, e seus ganhos derivam crescentemente de intrincadas operações financeiras.
Como ensinou a economia política, o processo econômico criado pelo desenvolvimento do capitalismo, através da forma industrial de produzir, permitiu libertar a vida material do homem das limitações impostas pela natureza. Ao mesmo tempo, porém, em que cria abundância, o capitalismo entregue a si mesmo cria também escassez. Como nos lembra sempre o Papa Francisco, a idolatria do dinheiro não nos permite ter paz. Dirigindo os destinos humanos há algumas décadas, a tirana finança transforma a riqueza produzida pela humanidade em consumo conspícuo e enriquecimento desenfreado para alguns, e desemprego e precariedade para muitos.
Durante duas ou três décadas após a Segunda Guerra Mundial, parecia que o capitalismo havia sido domesticado. O crescimento econômico dos países, associado à reprodução pelo mundo do padrão produtivo americano, era favorecido por um ambiente financeiro internacional estável, conferindo maior grau de liberdade às políticas econômicas nacionais. A expansão sistemática do consumo e do investimento se dava concomitantemente à elevação dos salários reais e à redução do desemprego. O temor social dos processos sociais e econômicos que haviam levado ao conflito total culminou na construção institucional do Estado de Bem-Estar Social, garantindo a todos os cidadãos o direito a sistemas nacionais e universais de saúde, educação e previdência.
Mas, nas últimas décadas, como alertou Tony Judt, o mal ronda a Terra. Nos países ricos, a concentração de renda e riqueza em uma pequena parcela da sociedade está ferindo a democracia. A estagnação de salários, o desemprego, a falta de uma identidade ocupacional, o trabalho sem jornada denunciam a crise do mundo do trabalho. Estudos conduzidos no Reino Unido atestam que nunca uma geração enfrentou tamanha dificuldade para adquirir uma casa e construir uma vida autônoma. A contradição entre a promessa de autonomia dos indivíduos e sua não realização alcançou o paroxismo – após décadas de enriquecimento, esses países enfrentam agora uma crise social em que falta moradia, emprego e renda. E a pandemia em que vivemos acentuou e escancarou essa contradição inerente ao modo capitalista de produção, hoje exacerbado enquanto capitalismo financeiro, e em sua difusa versão cultural pós-moderna.
Para os países periféricos, restou a cartilha dogmática do Consenso de Washington, com a imposição de regras de abertura comercial e financeira opostas às que sustentaram o desenvolvimento dos países ricos, como ensina o professor Ha-Joon Chang. As reformas empreendidas nesses países retiraram soberania dos Estados nacionais, ao desmontar seus mecanismos de promoção do desenvolvimento. Diante disso, as elites econômicas desses países se re-atrasaram, usando o espaço do Estado como socializador de perdas privadas e projeção de interesses individuais. Destituído de suas capacidades de planejamento, o Estado nacional se converte apenas em uma soma de pequenos interesses difusos. Estados fracos, países pobres, resumiu Angus Deaton, laureado com o Nobel de Economia.
No Brasil, o processo de desenvolvimento ao longo do século XX produziu riqueza e miséria. Por um lado, a transformação da estrutura econômica com a industrialização colocou o país no grupo das grandes economias globais e construiu uma sociedade moderna. Por outro, esse processo se deu, especialmente após 1964, através de uma modernização conservadora, levado a cabo sem romper com a estrutura agrária concentrada, sem construir um Estado de bem-estar social, ensaiado apenas após a Constituição de 1988, e constituindo um mercado de trabalho com um grande excedente de força de trabalho, marginalizada e pressionando os salários para baixo.
Na passagem para o século XXI, essa situação apenas se agravou com a desindustrialização precoce e acelerada, a desestruturação do mundo do trabalho e a inação diante da transformação das cadeias produtivas a nível global. No alvorecer de sua segunda década, a sociedade brasileira encontra-se em uma encruzilhada, incapaz de retomar os rumos de um processo de desenvolvimento que lhe permita endereçar os diversos problemas da vida urbana e rural. A uma economia em ruínas, corresponde uma sociedade que regride culturalmente e produz apenas desentendimento e ódio, enquanto procura soluções fáceis em discursos pasteurizados, que entregam apenas mais empobrecimento e violência.
O cenário em que vivia o jovem Giovanni di Pietro Bernardone na pequena cidade da bela região da Umbria, a quem o mundo mais adiante conheceu como Francisco de Assis, não era exatamente o acima descrito, uma vez que ele não vivia num tempo de predominância do modo capitalista de se produzir a existência. Entretanto, já se vivia a desagregação do sistema feudal, com uma burguesia nascente e a consequente transição para o capitalismo. O filme “Francesco”, dirigido pela cineasta italiana Liliana Cavani, descreve muito bem a pobreza e a degradação humana e social que assolavam Assis e região no final do século XII.
É neste cenário que o jovem filho do rico comerciante, cortejado de várias formas em seus privilégios, e ao mesmo tempo perturbado pela guerra e seus horrores, escuta, diante do crucifixo pintado de estilo bizantino na pequena igreja de São Damião, as palavras que converteram sua vida e de tantas pessoas depois dele: “Vai, Francisco, e reconstrói a minha casa que, como vês, cai em ruínas” (nas Fontes Franciscanas, ver Tomás de Celano 13; 2C 10). Uma conversão que o faz caminhar na direção da perfeita alegria, tendo como companheira a “Senhora Pobreza”, e abrindo a sua existência a um modo relacional e ético que, como se sabe, traduziu-se afinal em um louvor efetivo a Deus e todas as criaturas.
Em 2013, vindo do “fim do mundo”, assume a Cátedra de Pedro como Bispo de Roma e Papa da Igreja Católica o Cardeal Jorge Mario Bergoglio, jesuíta, Arcebispo de Buenos Aires, e herdeiro da tradição latino-americana de marca argentina conhecida como teologia do povo ou da cultura. Após breve conversa com o cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes, a qual se sucede aos momentos finais do conclave (“não se esqueça dos pobres”), e prestes a se apresentar a Roma e ao mundo na sacada diante do povo na Praça São Pedro, Bergoglio resolve se chamar Francisco. Diz que pretende caminhar junto com o povo, e pede dele a oração sobre o seu bispo, antes de conceder a bênção apostólica urbi et orbi. No mesmo ano, em exortação apostólica após o sínodo para a evangelização, deixa muito claro no capítulo segundo desse documento – o qual se pode afirmar como um programa de seu pontificado: esta economia mata, e precisa ser negada. Diz o Papa: “devemos dizer não a uma economia de exclusão e da desigualdade social” (Evangelii gaudium, n. 53).
É o Papa Francisco que passa a dar especial atenção às periferias do mundo e da existência, à pobreza e à degradação humana social que, em pleno século XXI, ainda nos assolam, e em escala crescente. Francisco passa a dialogar intensamente com os movimentos populares, e a enfatizar a necessidade de uma nova economia e, como ressaltou João Pedro Stédile, de “um processo de articulação em nível mundial que possa levar, mais do que a delinear programas unitários, a desenvolver ações e mobilizações que, em nível internacional, realmente enfrentam os problemas provocados pelo capitalismo” . Uma economia que garanta acesso universal à terra, ao teto e ao trabalho, e que não se reduza à lógica da acumulação (inerente ao atualmente predominante modo econômico de produção). Uma economia pautada pelo princípio da ecologia integral, diante da crise que é uma só, socioambiental, como afirmado na Encíclica Laudato si’. É este Papa que decide convocar a juventude global para, na mesa comum de Assis, “estabelecer um pacto para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia do amanhã”, a dizer, para “re-almar a economia” ; uma convocação para a Economia de Francisco.
Voltando brevemente à tentativa de análise de conjuntura, e também desse chamado, parece urgente que alguns consensos mínimos sejam planteados em torno da realidade objetiva (o que percebemos enquanto economia em ruínas), e do sentido das palavras (o que entendemos quanto ao que propõe o Papa Francisco à juventude de todo o mundo). No que diz respeito à percepção da realidade (e com honestidade em relação a esse real – Jon Sobrino), vale ressaltar o valor de ferramentas como a análise dos sistemas-mundo, em suas perspectivas de compreensão tanto do global, como do local, e dos chamados longo, médio e curto prazos. E, com elas em mãos, por exemplo, perceber: apesar da redundância, que o capitalismo é um modo de produção caracterizado pelas leis imanentes ao regime do capital (que, dentre muitas outras, contempla realidades escondidas como a mais-valia), e não da liberdade de mercado em si; que, nele, a luta de classes é um dado, e não uma pregação dos que a ele se opõem, e a acumulação / centralização / concentração do capital são tendências imanentes, como dito; que, inclusive, o capitalismo em seu estágio atual (neoliberal e financeiro) é incompatível com a democracia liberal até algum tempo atrás sustentada por ele mesmo (o que já havia sido antecipado por Karl Polanyi nos anos 40), e está nos levando atualmente ao próprio fim da era do humanismo. Logo, uma nova economia requer a superação deste modelo, o que também passa, obviamente, pela compreensão do sociológico, do político, do cultural, do tecnológico etc., e por ações locais a partir da organização territorial dos atores sociais.
No que toca ao entendimento do chamado que nos faz o Papa Francisco, vale ressaltar que sua mensagem recupera o impulso do Concílio Vaticano II de “volta às fontes”, o que remete, dentre outros: à compreensão histórico-crítica das Escrituras (que são abundantes nos relatos em favor de uma leitura libertadora das condições de opressão, vide a experiência de Moisés e do êxodo, o anúncio e a denúncia dos profetas, a missão de Jesus segundo Lucas, o modo de vida das primeiras comunidades cristãs etc.); à compreensão do ensino social da Igreja, e também de sua prática, como centrais ao seu próprio credo (é o próprio Catecismo que afirma que uma teoria que faça do lucro a regra exclusiva e o fim último da atividade econômica é moralmente inaceitável, e que a Igreja recusa, na prática do capitalismo, o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano – parágrafos 2424 e 2425); nesse sentido, à compreensão de que o bem comum, a destinação universal dos bens (e a consequente opção preferencial pelos pobres) etc. são princípios orientadores do pensar e do agir católicos, mas, claro, não adstritos ao mundo da catolicidade, tal como se dá no chamado para o encontro em Assis e no processo por ele originado.
Em sua Carta para o evento “Economy of Francesco”, Francisco afirma querer se encontrar com os jovens “para promover juntos, através de um pacto comum, um processo de mudança global que veja em comunhão de intenções não apenas quantos têm o dom da fé, mas todos os homens de boa vontade, para além das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade atento acima de tudo aos pobres e aos excluídos”. O Papa deseja o protagonismo dos jovens, portanto, e os convida para “[assumir] um compromisso individual e coletivo para cultivarmos juntos o sinal de um novo humanismo que corresponda às expetativas do homem e ao desígnio de Deus” . Em outras palavras, tal como o Cristo crucificado “falou” a Francisco de Assis, Francisco de Roma fala aos jovens do mundo inteiro: “Vão, Jovens de Francisco, e reconstruam a nossa economia, que, como veem, cai em ruínas!”.
O chamado vivenciado nos séculos XII e XIII por Francisco de Assis inspira até hoje milhares de pessoas, especialmente os jovens (a começar por Clara e os primeiros freis!), a responderem com a sua própria vida, palavra e ação. Esse mesmo chamado ecoa, hoje, na voz do Papa Francisco, no sonho de “re-almar” a economia, para que ela cumpra a sua missão de servir à Casa Comum. E, neste caminho do conhecimento e da análise das ruínas dessa economia que mata (ver), passando pela convocação do Papa Francisco para a economia da vida e o seu olhar evangélico sobre a realidade (julgar), chegamos nas possibilidades e nos sinais do nosso agir.
Tais caminhos, antes de tudo, são uma consequência da reflexão e das mudanças desde o campo pessoal, a partir do chão da realidade de cada um e de uma conversão ecológica que resulte em novos hábitos e estilos de vida, até as mudanças estruturais da sociedade necessárias em vista de uma nova civilização. Vale lembrar as palavras de Dom Helder Câmara, que dedicou parte de sua vida e de seu ministério a entender o Nordeste brasileiro, e a propor alianças e alternativas para o pleno desenvolvimento da região. Dizia ele: “Encontram-se, em toda parte, nos países pobres e nos países ricos, jovens maravilhosos, cheios de esperança, rebentando de generosidade, dispostos a gastar o melhor da vida pela construção de um mundo mais respirável e mais humano! Jovens, cuja juventude coincide com a juventude do mundo: as Minorias Abraâmicas se abrem para todos, mas nelas vocês têm um lugar especialíssimo!” (cf. O Deserto é Fértil).
O espírito das minorias abraâmicas nos impulsiona para este agir, conectados com a necessidade de estarmos permanentemente dispostos a conhecer e escutar a realidade. O nosso agir não será frutuoso se não estiver conectado com este caminho da escuta, sobretudo daqueles que estão nas periferias do mundo e da existência e, muitas vezes, são marginalizados, perseguidos, criminalizados e silenciados. É preciso entender a realidade, para assim interpretá-la e alimentar-se da mística desta força abraâmica que nos lança aos desafios e respostas do tempo presente, e a imaginarmos o futuro que queremos construir. Neste caminho para uma nova economia, a leitura do cotidiano é fundamental para um escrutínio de quais elementos da prática corriqueira, enraizados no território, informam-nos sobre o princípio da reprodução da vida rumo a uma outra economia possível, uma economia da colaboração e não da exploração. Assim, neste caminho do agir, vale destacar, por exemplo, a economia solidária e a práxis dos movimentos populares.
A respeito da economia solidária, as experiências de moeda social, bancos comunitários, cooperativas de agricultores familiares, de catadores/as, artesãos, coletivos culturais e literários, feiras agroecológicas e de orgânicos, festivais autogestionados, coletivos de comunicação, empreendimentos solidários, dentre outras iniciativas, demonstram um trabalho que se baseia na colaboração, no planejamento e nas decisões horizontais e coletivas, sendo o lucro – o fruto do trabalho de todos – gestado e compartilhado entre os envolvidos. Essas experiências demonstram também que é possível aos trabalhadores e às trabalhadoras desenvolverem suas habilidades e vocações, construindo um sistema econômico sem exploração e radicalmente comprometido com o cuidado de todo o planeta. Assim, a partir do exemplo dessas experiências, entendemos que a economia solidária pode ser vista como uma matriz econômica comprometida com o projeto de uma nova economia, não apenas como melhoramento do sistema presente, mas como aspiração por uma mudança estrutural sistêmica.
Nesse sentido, entendemos que os movimentos populares já trilham este caminho, pois a partir das suas práticas solidárias, que emergem do chão em que pisam, são exemplos de resistência e mobilização popular. São referências também para a Economia de Francisco porque aspiram por mudanças estruturais, para além das demandas imediatas, pois, nas palavras de Juan Grabois, “os movimentos querem pão para hoje, mas não fome para amanhã: temos reivindicações imediatas, mas também uma utopia a propor, que contempla a reforma agrária, a integração urbana e a inclusão pelo trabalho; marchamos por uma sociedade sem escravos nem excluídos, com terra, teto e trabalho para todos” .
Os movimentos populares ensinam muito sobre a solidariedade, a qual, no sistema vigente, é por si só um ato transgressor e revolucionário. Como sugere o próprio Papa Francisco no Encontro com os Movimentos Populares (2014, Roma), a solidariedade – oposto da indiferença – é muito mais do que gestos esporádicos, “é pensar e agir em termos de comunidade, de prioridades da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns; é também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, terra e casa, a negação dos direitos sociais e laborais; [...] a solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem”.
Partindo de exemplos práticos como esses, acreditamos que a reflexão é fundamental para a construção de uma outra economia. Defendemos a práxis freiriana, teoria do fazer, que não distancia a reflexão da ação, mas que se dão simultaneamente. Segundo Paulo Freire (cf. Pedagogia do Oprimido), essa reflexão não deve ser um jogo de palavras, pois assim não conduziria à ação, nem a ação pela ação, mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve ser dicotomizada. Não há revolução com verbalismo (palavra pela palavra), nem com ativismo (ação pela ação), mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas. Nesse sentido, este espaço de publicação proporcionado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU reveste-se de um papel indispensável na construção da Economia de Francisco.
Assim, a Economia de Francisco não é apenas um encontro, mas um processo já iniciado. É um caminho que não começa e nem termina em Assis, mas um movimento global em que as juventudes e as minorias abraâmicas se comprometem a imaginar um futuro no qual a economia seja colaborativa, solidária, criativa, inovadora e profundamente ecológica e democrática. Uma economia das pluralidades e das diversidades, dando lugar à promoção da vida. Há tarefas para o agora, para este tempo da pandemia e para o seu pós, e há tarefas de longo prazo para as mudanças estruturais, tarefas locais, regionais e globais. Mas todas essas tarefas só poderão ter êxito se forem pensadas e articuladas de forma conjunta, integrada, assim como propõe o Papa Francisco na sua encíclica Laudato si’, a partir do princípio da ecologia integral.
Para o presente, é preciso seguir com as iniciativas para derrotar a atual política econômica ultraliberal que vem sendo aplicada em vários países, como no Brasil, e denunciar a ditadura do sistema financeiro que sufoca a democracia. É preciso avançar com projetos como a renda básica universal e permanente, o aumento real do salário mínimo, uma reforma tributária que seja capaz de atacar as desigualdades e possibilitar um modelo que tribute progressivamente os mais ricos e alivie os mais pobres, o financiamento de políticas públicas que garantam serviços essenciais de forma universal e, com isso, promovam maior igualdade social etc.
Cabe seguir lutando pela ampliação do espaço democrático, pelo controle social do Estado, pela regulação do sistema financeiro, pela garantia de um serviço público permanente, estável e eficiente, diferentemente do que propõe a reforma administrativa, a qual, em verdade, visa acabar com o serviço público. Celso Furtado, cujo centenário de nascimento se completou neste ano, afirmava que “...o Estado nacional evoluiu para assumir o papel de intérprete dos interesses coletivos e assegurador da efetivação dos frutos de suas vitórias; esse processo deu-se mediante a crescente participação da população organizada no controle dos centros de poder, ou seja, a democratização do poder; ora, por trás desse processo esteve a progressiva capacidade de organização das massas trabalhadoras” (cf. O Capitalismo Global).
Para o futuro, é preciso repensar e retomar o papel de coordenação dos e entre os Estados nacionais. Em nível global, é necessário reconstruir a arquitetura do sistema monetário-financeiro internacional, não mais permitindo que a hegemonia do dólar, os paraísos fiscais e a liberdade absoluta dos fluxos de capital contestem qualquer possibilidade de políticas econômicas nacionais. Olhando para dentro de seus territórios nacionais, os Estados terão o desafio de, autorizados em suas formulações de política econômica, criar uma nova institucionalidade, que dê conta da separação entre trabalho e renda promovida pelo capitalismo contemporâneo. Incorporando os avanços tecnológicos desenvolvidos pelos sistemas técnico-científicos, os Estados terão o papel essencial de organizar, junto ao mercado, as formas de geração de renda adequadas às necessidades sociais locais, enquanto garantam que a renda gerada seja distribuída a seus cidadãos de acordo com as suas atividades – atividades, e não trabalho, porquanto carreguem sentido em si mesmas, e realizem o potencial criativo e solidário do ser humano enfim emancipado do árduo trabalho de sua própria reprodução material.
De fato, não haverá uma nova economia sem uma democracia forte e extremamente participativa, razão pela qual é crucial a retomada do protagonismo do poder local, do cotidiano do povo, pois a reconquista efetiva da democracia – vide o caso brasileiro – somente acontecerá em um processo que parta da mobilização da base e da práxis popular. Dessa maneira, a Economia de Francisco é uma oportunidade para remeter nossa consciência a voos maiores ou ao menos ousar apontar caminhos, mesmo em meio às tribulações. Reunir-se e debater projetos transformadores da experiência do dia a dia ocupa um lugar imprescindível na construção da utopia, pois a vida cotidiana é fundamental para não somente se conhecer a realidade, mas sobretudo transformá-la.
E, então? Vamos juntos reconstruir a nossa economia?
Claudia de Andrade Silva é arquiteta e urbanista, e mestranda pela FAU-USP, com pesquisa relacionada ao direito à cidade. Atua junto aos movimentos de luta por moradia em ocupações urbanas de São Paulo e junto à pastoral do povo de rua em Guarulhos.
Klaus da Silva Raupp é graduado em Direito pela UFSC, advogado em Santa Catarina, mestre em teologia pela PUCRS, professor na área teológica, e doutorando em teologia e educação pelo Boston College (Jesuítas), com pesquisa sobre design de currículo de educação religiosa com foco em justiça econômica.
Lucas Prata Feres é economista pela Unicamp, e mestrando no Instituto de Economia da Unicamp, com pesquisa sobre o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.
Roberto Jefferson Normando é filósofo, foi assessor das Pastorais Sociais do Regional NE 2 da CNBB, e é atualmente coordenador executivo do Observatório Social do Nordeste.
Tatiana Vasconcelos Fleming Machado é economista pela UFJF, e pós-graduada em Ciência de Dados pela PUC-Rio. Tem experiência com economia industrial e economia da cultura.